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Leia o prefácio de Nina Santos para "Máscaras e bandeiras", de Paolo Gerbaudo

Nina Santos é diretora do Aláfia Lab, coordenadora acadêmica do desinformante* e pesquisadora do INCT.DD (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital), da Universidade Federal da Bahia (UFBA).



Os protestos de 2013 foram um marco inconteste na vida política brasileira. Quase dez anos depois, muitos dos temas e das chaves interpretativas que pautam nossas discussões cotidianas emergiram naquele momento. Polarização, populismo e mídias sociais são apenas alguns exemplos de temas que ganharam visibilidade naquele momento e permanecem até hoje no centro da arena política. Aquelas manifestações, portanto, produziram efeitos concretos e duradouros na vida nacional.


Em seu livro anterior, Redes e Ruas: mídias sociais e ativismo contemporâneo, publicado em 2021 pela Funilaria, Paolo Gerbaudo trata justamente dessa forte conexão entre as redes e as ruas. Para ele, as ações em mídias sociais deveriam ser consideradas como complementares a ações face a face, podendo gerar novas formas de proximidade e novos formatos de interação. Corpo e território seriam, portanto, elementos centrais a serem considerados, garantindo uma percepção da materialidade e concretude das ações digitais na sociedade.


A ênfase de Gerbaudo nessa conexão entre digital e social foi certamente pioneira no cenário tanto da comunicação como das ciências sociais de forma mais ampla. Para defendê-la, o autor se coloca em debate com o amplamente disseminado conceito de “rede”, de Castells, e aquele de “enxame”, de Negri, para fornecer dois exemplos, considerando-os insuficientes para dar conta dessa dimensão da territorialidade do fenômeno.


Nessa vertente, ele também desenvolve um debate interessante com Bennet e Sergerberg, que propõem a ideia de ação conectiva. Para esses autores, o ambiente de redes faz emergir um novo tipo de ação política que se diferenciaria da tradicional ação coletiva em várias características, especialmente pelo fato de dispensar a formação de identidades coletivas na formação de movimentos de protesto. Gerbaudo reage a esse argumento ressaltando que, para ele, não se trata de abandonar a ideia de identidades coletivas, mas, sim, de compreender novos modos de formação de coletividades.


Todo esse caminho argumentativo que vai se construindo em diversas publicações a partir de Redes e ruas se consolida em Máscaras e bandeiras: populismo, cidadanismo e protesto global. Essa conexão intensa entre digital e social toma forma nesta nova obra, na qual o neoliberalismo e o populismo ocupam lugar central na análise dos protestos.

Como explica Gerbaudo, a máscara e a bandeira servem de símbolo para o que ele identifica como “as duas principais orientações políticas – neoanarquismo e populismo de esquerda – que se encontraram, se misturaram e se chocaram nos movimentos de 2011 a 2016, dando lugar à ‘nova política’ do cidadanismo” (p.22). Esta obra, portanto, pode ser vista como um esforço de ver a metade cheia do copo. O autor valoriza essa tomada de protagonismo dos cidadãos na busca de (re)colocar a cidadania no centro da vivência democrática sem, no entanto, fugir do debate sobre as contradições intrínsecas a esse processo que ele chama de “cidadania auto-organizada”.


(foto por Sato do Brasil)


Ao longo do livro, essa leitura é sustentada por uma diversidade de exemplos de novas forças, movimentos e agrupamentos que surgiram a partir dessas mobilizações. Deles emergem Donald Trump e Bernie Sanders, nos EUA, Podemos e Ciudadanos, na Espanha, para falar de dois exemplos de forças que vão em sentido contrário, mas se apoiam em lógicas de organização semelhantes.


Ao apontar o neoanarquismo e o populismo de esquerda como vertentes centrais desses movimentos, este livro certamente faz uma opção por traçar perspectivas positivas de saída para o sistema atual. Em tempos de desamparo político e social, buscar entender e aprofundar experiências inovadoras, interessantes e democratizantes é, sem dúvida, essencial, e esta obra é magnânima neste sentido.


Nós, como brasileiros e brasileiras, não podemos, contudo, deixar de refletir sobre o nosso processo nacional dentro dessa perspectiva global. É difícil olhar para 2013 e o que se sucedeu e enxergar perspectivas positivas. O caso brasileiro, de fato, parece desafiar pelo menos uma das premissas levantadas por Gerbaudo. Para ele, essa cidadania auto-organizada, buscada pelos cidadãos indignados, se colocaria “em oposição às oligarquias econômicas e políticas” e buscaria “reivindicar e expandir a cidadania”.


No caso brasileiro, essas premissas me parecem bastante ilustrativas dos discursos adotados pelos movimentos de protesto, seja em 2013 ou durante as manifestações que pediam o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, mas não de suas ações. Afinal, se analisarmos as consequências concretas de todo o movimento que reivindicava uma “nova política”, encontraremos, na verdade, o fortalecimento de oligarquias econômicas e políticas, e não seu enfraquecimento. Mas, sim, no discurso, o velho é colocado como novo apenas para se apresentar como diferente.


Já o ponto de vista do autor sobre a reivindicação de expansão da cidadania é crucial. De fato, esse elemento me parece estar presente nos movimentos globais e também nos brasileiros, seja o de 2013 ou os que os sucederam. Essa demanda pela inclusão de vozes antes silenciadas aparece nos diversos movimentos, sejam eles de esquerda ou de direita, progressistas ou conservadores.


(foto por Paolo Gerbaudo)


A relação entre inclusão de novas vozes, participação de forma geral e democracia não se dá, portanto, de forma direta. É preciso qualificar a participação para que ela seja capaz de contribuir para mais e melhor democracia. As redes digitais têm o potencial de serem apropriadas neste sentido, mas esse processo está longe de ser automático. Não é um ambiente tecnológico que trará mais democracia, mas, sim, a visão política que dele se apodera. Nesse sentido, é importante deixar claro que, enquanto movimentos progressistas, via de regra, defendem a inclusão de vozes dissonantes para produzir diversidade e representatividade, as mobilizações conservadoras que temos assistido nos últimos anos agem em sentido contrário. Estas, muitas vezes, utilizam-se do discurso da inclusão (e da liberdade de expressão) para defender a legitimidade de vozes que atacam, deslegitimam e defendem a extinção de opiniões, agrupamentos e identidades. O resultado é, portanto, uma democracia enfraquecida.


As mídias sociais acabam aparecendo como locus central desse processo, onde convive uma multiplicidade de mídias e de fluxos informativos. Esse espaço é apropriado de maneiras diferentes por essas duas forças, o que gera um duplo efeito. De um lado, ele é capaz de incluir novas vozes no debate público, vozes antes silenciadas e apagadas por aqueles poucos que controlavam a informação. Aumenta-se a liberdade editorial e de fala ao mesmo tempo em que se aumenta o potencial de garantir uma menor desigualdade entre diferentes pontos de vista, experiências e vivências. Fortalece-se a democracia.

Por outro lado, essa multiplicidade abre também espaço para conteúdos nocivos, produzidos para desinformar – seja por interesse político ou econômico. Cria-se, dessa forma, uma possibilidade ampla e disseminada de usar a manipulação da informação como arma política, o que decerto funciona no sentido contrário do que vimos anteriormente e resulta no enfraquecimento democrático.


Apesar de ter sido escrita originalmente em 2017, esta obra aborda um ponto que ganhou ainda mais relevância nos anos seguintes: as mudanças na relação entre o nacional e o global. A indignação com as consequências de uma globalização perversa, como defendia Milton Santos, aparecem atreladas ao fortalecimento do nacional como campo de batalha. Se esse elemento foi crucial na onda de protestos, ele foi sem dúvida aprofundado durante a pandemia da covid-19. No momento em que o nível de privilégio dos mais ricos nas cadeias de produção globais ficou gritantemente evidente e conviveu diretamente com dezenas de milhares de mortes, as discussões sobre processos de “desglobalização” se tornaram intensas. Gerbaudo nos ajuda a ver que essa questão tem raízes mais profundas, que já estava germinando embaixo da terra.


Essas são algumas questões abordadas neste livro e que certamente nos fazem pensar de maneira mais complexa sobre o cenário em que nos encontramos hoje. Passados cinco anos da publicação original, a obra esbanja atualidade. Ela nos ajuda a avançar tanto na compreensão de conceitos e elementos cruciais para entender a realidade contemporânea, como também na construção de uma cidadania ativa e inclusiva que fortaleça as sociedades democráticas.



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