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Radicalizar o feminismo para transformar o mundo - leia o prefácio de Flávia Rios

Flávia Rios é socióloga, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial Afro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Afro/Cebrap).


Finalmente, chega ao Brasil o pensamento feminista radical de Andaiye. Fruto da geração de ativistas negras latino-americanas e caribenhas, a pensadora guianense se soma ao seleto conjunto de autoras do Atlântico Negro que esbanjou suas grandes intelectuais, radicalmente democráticas e críticas ao eurocentrismo nas Américas.


Andaiye (1942-2019) é uma pensadora da mesma safra de Angela Davis (1944-), Lélia Gonzalez (1935-1994), Audrey Lorde (1934-1992) e Beatriz Nascimento (1942-1995), intelectuais de dimensão pública que investiram, a um só tempo, na reflexão crítica e na ação no mundo. Em comum, essas autoras têm o contexto social internacional marcado pelos debates do segundo pós-guerra, pelo feminismo em escala global rompendo com as fronteiras entre o privado e o público, o pessoal e o político. Mais ainda: o contexto de Guerra Fria e das lutas anticoloniais por emancipação e independência dos países africanos e asiáticos, e também de algumas colônias americanas. Não menos importante são os protestos e manifestações antirracistas, dos direitos civis aos Black Panthers. O antirracismo, o anticolonialismo e o feminismo serão solos férteis para o pensamento radical dessas pensadoras negras. Andaiye é a autora que nos permite entrever essas reflexões a partir do Caribe.


Neste livro, Andaiye critica a estruturação das desigualdades de múltiplas naturezas em contexto amplo da América Latina, ao mesmo tempo que reflete sobre as particularidades desse processo no Caribe. São seus temas de interesse o modo como nação, raça, etnicidade, classe e gênero operam na estruturação das desigualdades. Segundo ela, “há uma hierarquia de poder entre homens e mulheres – e toda mulher caribenha, de qualquer raça ou idade e até mesmo classe, vive uma realidade de subordinação feminina”. De tal forma, ainda que seja de fundamental importância buscar entender as razões que levam homens a estarem em condições de desigualdades educacionais, em termos de desempenho e evasão escolar, a autora entende que as mulheres estão longe de estar no centro do poder político, econômico e cultural das sociedades capitalistas. Ou seja, a razão feminista radical segue sendo necessidade imperiosa ao enfrentamento do patriarcado.


Há ainda uma nota a se fazer sobre a importância do pensamento caribenho na tradição política das reflexões e lutas anticoloniais nas Américas. Já é conhecida do público brasileiro a importância do Caribe francófono para o pensamento latino-americano (e mesmo para além da região). O poeta, político e ensaísta Aimé Césaire (1913-2008), um dos pais da negritude, e o psiquiatra e revolucionário Frantz Fanon (1925-1961) são provas da importância dos intelectuais negros caribenhos para o debate internacional sobre o colonialismo. Da mesma forma, o Caribe anglófono tem seus grandes representantes para o desenvolvimento crítico do pensamento latino-americano. As recepções do pensamento do marxista e historiador C. L. R. James, como em relação ao seu Os jacobinos negros, e do grande Walter Rodney, com Como a Europa subdesenvolveu a África, dão mostras de quanto a radicalidade do pensamento caribenho é influente no Brasil e no mundo.



Contudo, nessa seleta lista não se mostram as mulheres. E, em particular, as mulheres negras. Do Caribe, as mulheres negras – cujos escritos não são literários – tiveram pouca inserção e tradução para a língua portuguesa. Por esse motivo, os ensaios políticos de Andaiye se apresentam com um raio a iluminar esse celeiro de ideias radicais emergentes em terras caribenhas.


No debate contemporâneo, a coletânea de Andaiye que ora está disponível ao público brasileiro se soma às contribuições radicais de autoras decoloniais e feministas negras, como a antropóloga colombiana Mara Viveros e a cientista política francesa de origem da ilha de Reunião Françoise Vergès, que chegaram ao Brasil nesta última década. Junto ao pensamento delas, eis agora Andaiye, com seu grande vigor intelectual. Explico-me.


Andaiye é uma autora que pode ser inserida no black feminism. Sua experiência pessoal e suas reflexões sobre a vida de mulheres negras lhe conferem – assim como se nota em feministas negras no mundo marcado pelo colonialismo – um olhar próprio para o feminismo. Dito de outra maneira, nas experiências e na produção de feministas negras, a dimensão racial é fortemente estruturante do pensamento, posto que é tema da ordem da vida diária dessas mulheres racializadas. Nas palavras da autora: “Aprendi as limitações de raça impostas antes de aprender as limitações de gênero: aprendi muito cedo o uso da palavra ‘preta’ como depreciativa (‘Saia do sol, quer ficar mais preta?’, dito especialmente às meninas negras)”.


O livro traz temas caros ao feminismo. Temas como autonomia das mulheres em relação às organizações masculinas, a relação conflituosa entre organizações feministas e partidos de esquerda, a ascensão do neoliberalismo na região, o impacto das políticas imperialistas dos Estados Unidos e da Inglaterra, o debate sobre as desigualdades econômicas e de poder, as desigualdades intragênero, entre outros. Esse leque amplo mostra que as afinidades entre Andaiye e as demais intelectuais negras das Américas não se limitam a experiências geracionais. Há temas e abordagens que se aparentam e se avizinham, revelando as afinidades intelectuais e o anseio por transformações sociais, culturais e econômicas profundas no continente.



Como crítica do feminismo, Andaiye também deixa seu legado. Em particular, realiza críticas em relação aos rumos e ao futuro do feminismo. Mesmo reconhecendo os ganhos dos movimentos feministas, como a ampliação do debate sobre a subordinação das mulheres, a ampliação ao acesso à educação, melhor inserção no mercado de trabalho, entre outros, ela considera que há ainda grandes desafios pela frente, como a institucionalização dos movimentos sociais e também do feminismo na região. A relação tensa e de dependência dos movimentos com organizações filantrópicas e outras agências financiadoras do norte global é um desafio presente para o ativismo caribenho. O efeito “neutralizador” nas radicalidades dos movimentos é um dos problemas identificados pela autora ao tratar desse desenvolvimento do feminismo em suas formas mais cristalizadas de organização civil não governamental. Não escapam a Andaiye os vínculos imperialistas do filantropismo nos movimentos progressistas da região. Também não lhe soam menos problemáticos os impactos de uma política neoliberal de gestão dos problemas sociais mediados pelos movimentos institucionalizados na sociedade civil, que atuam com ações desenhadas por “projetos” e “público-alvo”.


Outra marca importante desses desafios debatidos pela autora são as clivagens geracionais, étnicas, de classe social, no interior do feminismo. Para o caso do Caribe, essas desigualdades, muitas vezes, se expressam na baixa presença ou até na ausência de mulheres indígenas, das classes trabalhadoras e de mulheres indo-caribenhas nas organizações feministas. Além das desigualdades nas relações de poder nas sociedades patriarcais, coloniais e capitalistas em desfavor das mulheres, Andaiye mostra a importância de refletir sobre as relações de poder entre as mulheres.


Não sem razão, Andaiye entende que o desafio dos nossos tempos é transformar o mundo. Para tanto, é preciso radicalizar o próprio feminismo. Desse modo, este livro é um grande convite a conhecer esse pensamento negro radical e feminista do Caribe; que, por falar tanto e tão profundamente do Caribe e da América Latina, acaba por tratar de temas centrais das sociedades contemporâneas e seus desafios para o bem viver.



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