Conheci a Marilene em 2012 numa ocupação do MTST em Embu das Artes, na região metropolitana de São Paulo. Mãe solo de três filhos, como tantas, tinha de escolher entre colocar a comida na mesa ou pagar o aluguel. Uma ocupação, além da luta por moradia, sempre é um espaço de construção de relações diferentes entre as pessoas; formas pautadas não pela competição e pelo individualismo, mas pelo trabalho coletivo. Nas cozinhas, nos saraus, nas cirandas, a solidariedade e o companheirismo é que ditam as regras.
Foi também com a convivência franca nesses espaços, ao ver sua história repetida na vida de tantas outras companheiras, que nasceu a percepção de que, dentro dela, crescia e ganhava força uma voz coletiva. No reconhecimento das experiências compartilhadas, Marilene – que logo era chamada por todos de “poeta”, apelido carinhoso pelo qual a chamamos até hoje – foi fincando seu pé no barro do movimento. Além de presença constante e ativa nas ocupações e formações, Marilene passou a expressar em verso e prosa a luta de todo aquele povo. Tornou-se a nossa Poeta.
Sua poesia, que aparece agora escrita e publicada neste livro, foi primeiro cantada, declamada muitas vezes. Circulou no boca a boca, aparecendo em nossas reuniões e encontros, nos saraus, nas cozinhas coletivas. Aqueles que ouviam a poesia se identificavam, anotavam e a declamavam depois em outros espaços, claro que cada um ao seu modo, mudando coisa aqui outra lá, com cada um dando seu próprio tom e uma dimensão coletiva à obra. Também por isso, o trabalho de organizar, recuperar e colocar no papel a maioria das poesias compostas pela Poeta – aqui estão apenas algumas – não foi tarefa simples e contou com uma pequena equipe que se dedicou muito para que muitos mais pudessem ter acesso a essa obra tão rica.
(fotografia de Leandro Paiva)
O livro se divide em três núcleos e reconta, na forma de poesia, um pouco da dinâmica que vemos repetida na vida de tantos companheiros e companheiras nas ocupações. O primeiro é uma apresentação e as duas poesias que o compõem – “Por que ocupamos” e “Alma de poeta” – introduzem um pouco do sentido da luta do MTST e a vocação dessa poesia que nasce da urgência. O núcleo seguinte conta os caminhos e desafios dessa população de migrantes, trabalhadores, faxineiras, catadores. “Mãe de rua” nos permite enxergar essa mulher apagada da nossa convivência social que sobrevive em um buraco sob o viaduto. Em “Caminho das pedras”, vemos o tema do deslocamento do sertão para São Paulo, a exploração por meio do trabalho exaustivo, a alienação do trabalhador. Nesse núcleo das lutas do povo, ganha voz também o sofrimento causado pelo racismo e pelo machismo, estruturantes da nossa sociedade: Lucas, Agatha, Evaldo – são nomes que a poesia evoca, cristaliza, não nos deixa esquecer.
Contudo, o reconhecimento desses problemas é apenas uma parte do processo que vemos em nossas ocupações. Essa primeira etapa só pode se tornar resistência quando encontra sua forma na luta – e esse é o tema do último bloco deste livro. No MTST, costumamos dizer que “é na luta que a gente se encontra”, e ela também nos ensina que, se lutamos por um teto para nós, lutamos também pelo companheiro que segue ao nosso lado. Aprendemos que o teto da casa não basta: é preciso o teto da escola, do hospital – uma nova cidade, uma nova sociedade onde todos tenham teto. A “Terra que educa”, que aparece no último poema deste último núcleo, é a terra à qual pertencemos, quando o pé está fincado em um barro nosso. “Paulo Freire” (Embu das Artes – São Paulo), “Copa do Povo” (Zona Leste – São Paulo) representam duas das tantas ocupações em que a Poeta de pé no barro esteve, com sua alegria e seus versos.
Este livro é da Marilene, mas é também de tantas companheiras, com histórias diferentes, que pisaram o mesmo barro. É uma obra coletiva de milhares de mulheres sem-teto, que fizeram da luta profissão de fé e anúncio de esperança. Nossa querida Poeta deu voz, em lindos versos, a todas elas.
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